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O governo quer estimular a formação de uma grande empresa farmacêutica com capacidade de competir com as multinacionais. Há condições para isso?
Revista Exame – 12/06/2008
Por Roberta Paduan
Um plano alimentado pelo governo federal há pelo menos três anos, de fazer germinar um superlaboratório farmacêutico com capital brasileiro, parece ter ultrapassado as portas dos gabinetes oficiais e encontrado ressonância no setor. “Meu sonho é ver uma ‘Gerdau’ da nossa indústria”, afirma José Ricardo Mendes da Silva, presidente do Aché, o maior laboratório nacional, referindo-se à siderúrgica gaúcha que se transformou numa das multinacionais mais proeminentes do país. No final de maio, um seminário sobre o setor de saúde promovido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social ajudou a esquentar as conversas sobre possíveis fusões e aquisições nessa área. “Todo mundo está conversando com todo mundo, e nosso radar está ligado 24 horas por dia”, diz Silva. No início de junho, ressurgiu um boato de que a Medley, terceira maior farmacêutica de capital nacional, estaria sendo vendida — especulação já aventada em duas outras ocasiões, em 2006 e no início deste ano. O presidente da empresa, Jairo Yamamoto, nega. “É natural que num debate sobre a consolidação da indústria a Medley e outras grandes sejam envolvidas”, diz Yamamoto. “Mas, definitivamente, não estamos à venda e não há nenhuma negociação em curso.”
Boataria à parte, tudo indica que a possibilidade de vender, comprar ou fundir-se com um concorrente está na ordem do dia das farmacêuticas brasileiras. Do lado do governo, o interesse em promover casamentos é explícito. “Queremos fortalecer essa e qualquer outra indústria brasileira, e isso não tem a ver com nacionalismo, mas com realismo”, afirma Miguel Jorge, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. “No jogo do comércio global, é preciso ter empresas grandes e competitivas.” No BNDES, o discurso é mais enfático. “Pretendemos funcionar como agente catalisador na formação de um grande laboratório brasileiro”, diz Pedro Palmeira, do departamento químico e farmacêutico do banco. “O objetivo é que, no futuro, essa empresa seja capaz de lançar novos medicamentos e colocá-los nas farmácias, inclusive da Europa e dos Estados Unidos.” A empresa sonhada teria de faturar pelo menos 3 bilhões de dólares, o triplo das receitas atuais do maior laboratório do país, e investir fortemente em pesquisa — o setor inteiro investe modestíssimos 285 milhões de dólares. No papel, a criação de uma empresa brasileira forte e competitiva no setor farmacêutico seria uma ótima notícia. Trata-se de uma área estratégica pelos benefícios que pode trazer à sociedade e ao desenvolvimento de uma cadeia de negócios dependente de pesquisa e inovação (veja reportagem na pág. 140 da Revista Exame).
Esse, para muitos, seria o mundo ideal. Mas não se pode deixar de lado o mundo das realidades, e nele responder a uma pergunta inescapável: diante das cifras bilionárias, tanto de faturamento quanto de investimentos em pesquisa que o setor de remédios envolve, há alguma chance de uma empresa brasileira despontar como competidora global? Alguns especialistas acreditam que sim — apesar do atraso histórico do país nesse setor. A crença está assentada em um pilar: as empresas brasileiras vêm crescendo nos últimos anos, e isso coincide com uma mudança tecnológica mundial que dá chance a novos empreendimentos. Segundo essa visão, as farmacêuticas locais estariam diante de uma espécie de janela de oportunidade — um conjunto de condições positivas que raramente se combinam. “Alguns laboratórios brasileiros conseguiram ganhar musculatura na última década e até superaram o faturamento das multinacionais que operam no país”, afirma Gabriel Tannus, presidente executivo da Interfarma, associação que representa as farmacêuticas estrangeiras. Esse robustecimento, obtido com o advento dos genéricos, torna as empresas nacionais mais aptas a competir.
O desenvolvimento da biotecnologia também conta a favor dos emergentes. “O Brasil perdeu o jogo dos medicamentos sintéticos, mas o jogo da biotecnologia ainda está no começo em todo o mundo”, afirma Silva, do Aché. A tecnologia de drogas sintéticas, que combina substâncias químicas, existe desde o século 19 e gerou quase todos os remédios que conhecemos hoje. A onda mais recente, que floresceu nos anos 80, cria remédios por meio da manipulação genética. Muda-se, portanto, da base química para a base biológica — o que abre espaço para novas empresas. Além desses fatores, conta positivamente um ambiente mais propício à pesquisa no país graças ao amadurecimento do conceito de proteção da propriedade intelectual a partir de 1996, com a Lei de Patentes — apesar de o próprio governo agir de maneira contraditória, como ocorreu no ano passado, quando um decreto presidencial suspendeu a licença de um remédio antiaids com patente ainda válida para que o Ministério da Saúde importasse um genérico da droga.
Fora do campo das oportunidades, é provável que as farmacêuticas brasileiras sejam obrigadas a mudar de patamar por pura necessidade. “A dinâmica mundial deixou apenas dois caminhos para as empresa do setor em todo o mundo: o da inovação e o da produção de genéricos”, afirma Ciro Mortella, presidente da Febrafarma, federação que representa laboratórios tanto de capital nacional como estrangeiros. “Hoje, só empresas globais conseguem fazer pesquisa e desenvolvimento e, no futuro próximo, também só as globais conseguirão fabricar genéricos.” Atualmente, gastam-se 900 milhões de dólares, em média, para criar um novo medicamento. Trinta anos atrás, esse custo ficava na casa dos 70 milhões. Não foi à toa que as multinacionais se fundiram e compraram umas às outras freneticamente a partir dos anos 90.
A criação de uma superfarmacêutica brasileira passa necessariamente por uma consolidação no setor.
Compare o tamanho das maiores companhias estrangeiras com as nacionais (vendas em 2007)
As maiores do mundo (em dólares)
- Pfizer 48 bilhões
- GlaxoSmithKline 45 bilhões
- Sanofi-Aventis 41 bilhões
- Novartis 40 bilhões
- AstraZeneca 29 bilhões
- As maiores brasileiras (em dólares)
- Aché + Biosintética 1 bilhão
- EMS 590 milhões
- Medley 424 milhões
- Cristália 314 milhões
- Biolab Sanus 263 milhões
Fontes: Febrafarma, Melhores e Maiores e empresas
Na seara dos genéricos, as empresas indianas e chinesas avançam rapidamente com ganhos de escala planetária. O recado, nesse caso, é que elas podem ocupar espaço no mercado brasileiro com preços baixos. Diante desse cenário, parece imperativo que a indústria farmacêutica nacional passe logo por um processo de consolidação. A comparação das maiores companhias globais com as grandes brasileiras mostra uma diferença abissal. Enquanto a Pfizer, líder mundial, teve receita de 48 bilhões de dólares em 2007, a Aché, maior brasileira, faturou pouco mais de 1 bilhão. Essa é uma das justificativas do BNDES para o plano de criação de um superlaboratório nacional. Os primeiros passos do governo nessa direção foram dados em 2004, quando o banco lançou um programa de financiamento ao setor, o Profarma. Isso ocorreu muito antes de surgirem as primeiras fumaças sobre a supertele, que culminaram com a compra da Brasil Telecom pela Oi, em abril deste ano — operação que o governo induziu claramente e que levou o BNDES a entrar com 2,6 bilhões de reais em crédito aos sócios da Oi. Por meio do Profarma, o banco já emprestou 1 bilhão de reais a projetos de modernização de laboratórios e a duas aquisições: a compra da Biosintética pelo Aché, em 2005, e a da Barrene pela Farmasa, em 2006. No final do ano passado, o programa foi renovado, agora com 3 bilhões de reais, metade para projetos de pesquisa e desenvolvimento e metade para operações de compra ou fusão de empresas nacionais.
Nem as oportunidades nem as ameaças, no entanto, serão capazes de mudar o perfil da indústria farmacêutica nacional se empresários brasileiros não se convencerem de que a transformação faz sentido. No rol de entraves para a criação de uma empresa global, a mentalidade do empresariado está em primeiro lugar. “Muitos empresários ainda preferem ter 100% de um negócio pequeno a 10% de um grande”, afirma Palmeira, do BNDES. Até hoje, nenhum laboratório nacional abriu o capital. Quem chegou mais perto foi o Farmasa, que no final de 2007 recebeu como sócio o GP Investimentos — há poucos dias, a Hypermarcas, empresa de produtos de consumo, adquiriu o Farmasa. Aché e Medley estão entre os pouquíssimos com gestão considerada profissionalizada, contando com presidentes que não têm o sobrenome das famílias fundadoras.
Os bilhões fazem a diferença
Um dos desafios que o superlaboratório brasileiro terá é o investimento em pesquisa.
Compare a diferença de orçamentos anuais (em dólares)
- Total dos investimentos do grupo suíço Roche 7 bilhões
- Conjunto das farmacêuticas que atuam no Brasil 285 milhões
Fontes: Febrafarma e Roche
Ninguém tem a resposta se haverá ou não no futuro um laboratório brasileiro global nem se o governo conseguirá atingir seus objetivos. Quanto a esse ponto, aliás, há uma polêmica. “Não acredito que o BNDES deveria colocar dinheiro público numa indústria que demanda tanto capital e apresenta tantos riscos quanto a farmacêutica”, afirma o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-presidente do banco. “Existem áreas em que o país tem mais vantagens comparativas, que deveriam ser priorizadas.” Entre os defensores da idéia, o argumento é que o BNDES pode ser apenas uma das fontes de recursos — como também pode ser o mercado de capitais — a dar as condições mínimas para um novo salto do setor. “Não se trata de um caminho fácil, mas considero perfeitamente plausível que o Brasil tenha uma Pfizer ou uma Roche daqui a 20 ou 25 anos”, diz João Carlos Ferreira, diretor comercial da subsidiária da suíça Roche. “Quando eu lia a respeito da Embraer, na década de 70, achava um delírio o Brasil aspirar a ter uma indústria de aviões e, felizmente, eu estava errado.” De fato, a Embraer — hoje uma das quatro maiores fabricantes de aviões do mundo — nasceu da iniciativa estatal, em 1969, e, privatizada, tornou-se símbolo da tecnologia de ponta nacional. Na época, vigorava no país o conceito de substituição de importações, atualmente um retrocesso, diante das práticas que moldam a globalização. O governo nega que esteja promovendo uma volta ao passado. “Não se trata de xenofobia, mas de estímulo para que a indústria brasileira, seja qual for a origem de seu capital, continue gerando emprego e tecnologia”, diz Miguel Jorge.